Quando o mundo chegava

O dia anunciava-se como se fosse de festa, mesmo que não houvesse sinal de foguetes no ar nem a banda estivesse preparada para sair. À beira da estrada que levava ao resto do mundo, mesmo no centro da pequena aldeia, juntavam-se miúdos e graúdos. Uns sentados nos degraus, outros de pé e mais uns quantos a sofrer com a ansiedade pelo que tardava em chegar. O coração apertado com o pensamento “E se não vierem hoje?”. 

O dia estava marcado no cartão que lhes tinha sido entregue no mês anterior e correspondia ao dia que o calendário marcava, mas e se não viessem? 

- Já aí vem - gritava um seguido pelo burburinho de mais uns quantos. 

Já se ouvia o motor ainda antes de se avistar a camioneta que trazia os livros. Lá vinha ele com os seus dois ocupantes nos bancos da frente e o mundo inteiro bem guardado na parte de trás. 

- Ora bons dias - cumprimentavam os senhores enquanto abriam as portas do fundo.

Na fila da frente, uma rapariguita de pouca altura e nariz demasiado espevitado para a idade, esperava a sua vez de entrar.

- Vê lá o que escolhes - diziam-lhe os senhores à laia de piada quando recebiam os livros do mês anterior e os confirmavam. Já lhe conheciam o gosto pelos livros que não eram para ela. Há idades para tudo, é o que dizem. Ela acha que há gostos para tudo e a idade não passa de um número que diz muito pouco. 

Percorre as prateleiras cheias de livros. Estão ali tantos e são tão poucos os que pode levar. Procura os que já tinha escolhido da última vez e arruma-os debaixo do braço antes que mais alguém os escolha. É por isso que faz sempre por ser a primeira. Basta chegar mais tarde e já outro leva os melhores.

Entrega-os ao senhor que encontra todos os meses e assiste, impaciente, à calma com que ele preenche o seu cartão. Cinco livros escolhidos que não chegam para ocupar um mês demasiado comprido. Com sorte consegue que rendam até meio. Com sorte. 

- Daqui a um mês tens de os devolver - dizem-lhe. 

Como se ela não soubesse, mas durante um mês eram seus. Tratados com todos os cuidados e mais alguns que não há dinheiro para pagar estragos e aquelas páginas são o seu maior tesouro. O dela e o de todos aqueles que de mês a mês esperam que a carrinha chegue. Sempre no mesmo sítio. Esperam pelo mundo. Um mundo que não acreditam que lhes pertença, mas que todos os meses chega nas costas de um carrinha.

Comentários

  1. Já pensaste em publicar? Escreves tão bem mulher.

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  2. Oh, obrigada :) Por acaso penso muitas vezes nisso...

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  3. Pois eu gostava de poder ler todas estas histórias seguidas, e poder colocá-las, com capa, na minha mini-biblioteca.
    E já agora era capaz de pedir um autógrafo. Que tal?
    Vânia, cá o espero.
    Entretanto, vai deste lado um beijo

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